Recebi o texto abaixo há alguns dias e julguei-o digno de ampla publicação. Acho que fala daquilo que é fundamental acerca do conflito na Palestina. De fato, devemos dizer NÃO também à qualquer esforço de construção de um estado palestino como "solução". Penso, porém que não se trata apenas de dizer o que deve ser dito. Qual clareza devemos ter na consecução da autodefesa por fora dos esquemas traçados pelo Hammas e outros candidatos à estatização da revolta palestina?Um problema da «solução» dos dois estados é que a existência de Israel continuará, mas este estado é uma criação artificial, sem legitimidade nenhuma. Por outro lado, toda a região, incluíndo não apenas a palestina histórica, como o Líbano e a Jordânia, resultam do desmembramento artificial, pelos imperialismos francês e britânico, do império otomano, no seguimento da 1ª guerra mundial. São estados artificiais, que estarão sempre em permanente convulsão, por juntarem e obrigarem comunidades diversas a coexistir e ter relacionamento político de uma forma forçada, havendo portanto lugar para várias situações de opressão, quer com base na etnia, na nação, na religião, além da opressão de classe e de género.
Assim, tal como no resto do mundo, a questão do estado na Palestina põe-se de modo agudo. Para que precisam os povos do estado? Não é o estado que promove as guerras? não é o estado que mantém as opressões? Para que precisarão os povos do estado, sabendo-se que não existem povos que não tenham capacidade de auto-gerir a sua vida (a sua produção material e cultural, o seu relacionamento com comunidades vizinhas ou distantes, etc)? Sabemos que a «autoridade» do estado é apenas uma opressão. Não é uma autoridade que emane verdadeiramente de uma vontade popular, da expressão genuína da vontade das pessoas.
Se olharmos por este prisma para a realidade israelo-palestiniana, compreendemos que os estados não são parte da solução, mas sim (e muito importante) do problema.
Renunciar a solucionar os problemas de raíz, só porque outros têm uma visão muito mais curta que a nossa, não será uma indesculpável cobardia intelectual (no mínimo)?
Se nós compreendemos o mal que faz o nacionalismo (quer o israelita, quer o palestiniano) a estas populações, não podemos senão repudiá-lo. São comunidades judaicas, muçulmanas, cristãs e também comunidades sem vínculo a uma religião, laicas, que poderiam viver tranquilamente e desenvolver as suas vidas e tradições na palestina histórica, sem conflitos inter-étnicos, como aconteceu durante séculos, no império otomano. Note-se porém que a ingerência da ONU e das potências na zona, só agravou os problemas, só os perpetuou e complicou.
A solução radica na consciência de que as diversas comunidades têm de se entender, de se auto-organizar sem ingerências, partilhando espaços geográficos da melhor forma possível. Será uma solução vinda de dentro dessas comunidades, não uma solução imposta, forçada de fora, a qual só poderá produzir mais miséria, violência, intolerância.
Vemos o caso deplorável da ex-Jugoslávia, fraccionada em micro-estados sem viabilidade e sustentação política e económica, por vontade da todo-poderosa UE, dos seus estados- -membros mais fortes.
Vemos o caso da África negra, a sangue e fogo permanente, desde as independências, que mais não foram do que a passagem do jugo colonial para o domínio duma burguesia parasitária neo-colonial, totalmente dependente das antigas potências colonizadoras, para se manter no poder. Esta luta pelo poder em África efectua-se usando a bandeira da nação, do nacionalismo, dilacerando povos que não tinham estados-nação formados, com algumas raras excepções, antes da colonização europeia.
Nada de bom pode surgir pelo lado do nacionalismo; não existe «nacionalismo progressista»; é pura contradição nos próprios termos. «Civilização» significou sempre um abolir ou amenizar, um secundarizar, as barreiras, as fronteiras, os obstáculos que separam os povos em «nações» artificiais.
O próprio conceito de nação, como algo distinto do estado, tem pouca utilidade, ao fim e ao cabo. A não ser que usemos o conceito de nação numa forma pouco comum, mas que -por isso mesmo- pode ser mal interpretado, como sinónimo de etnia (portanto reconhecendo «nações» sem estado, como muitos agrupamentos tribais ou supra tribais que existem ou subsistem nos interstícios das «nações-estados» modernas). A nação, a pátria, é um conceito totalmente fabricado, ideológico, que surge no século XIX com o triunfo da burguesia. Nessa época era necessária uma ideologia para que esta burgusia conseguisse manter o domínio, quer sobre as antigas classes dominantes, a aristocracia, quer sobre os deserdados, os proletários, os camponeses arruínados por um desenvolvimento industrial e agrário que fez tábua-rasa da pequena exploração agrícola. Daí a invenção do nacionalismo, associado ao belicismo, à exaltação do heroísmo e do sacrifício «pela pátria». O culminar desta ideologia deu-se com as duas guerras mundiais, que tiveram como local de origem a Europa, local onde foi inventado o conceito de «nação» (a nação como suposta emanação do «povo soberano», necessitando de um determinado «espaço vital», etc, etc)
Igualmente, foi o nacionalismo que activou a conquista mais impiedosa de muitos povos no século XIX, a pretexto de «civilizar» povos sem estado ou com estados mais débeis, os estados-nações europeus auto-designando-se como civilizadores, portadores do progresso a esses confins... O pior da aventura colonial deu-se no século XIX e XX, onde realmente as chacinas ultrapassaram muitas vezes em crueldade as que foram efectuadas nos séculos anteriores. A partir do século XIX, expandiu-se a predação colonialista e com ela o efeito nefasto da peste nacionalista nos 5 continentes. Não se pode esquecer que também houve grandes genocídios nos séculos anteriores, nomeadamente de populações africanas e indías-americanas, por chacinas, escravização e propagação de epidemias.
Mas nos séculos XIX e XX -em nome do progresso, da civilização, do império, da superioridade da «raça» branca, etc- foram cometidas atrocidades sem nome em todos os continentes, tudo isto afinal sob a cobertura do conceito cómodo de «nação»...
Este conceito foi «naturalizado», pelos ideólogos, como se a pertença à nação fosse algo de genético.
Ainda vemos claramente o efeito disso na atitude racista e xenófoba dos europeus em relação aos imigrantes não-europeus (ou mesmo europeus de outras zonas) que vêm trabalhar para os diversos países.
Haverá coisa mais nojenta? Quem incentiva estes comportamentos? Não serão estimulados pelas burguesias que dominam a política dos diversos estados, conseguindo assim desviar dela a raiva dos explorados pela perda de condições de vida, pela intensificação do desemprego, da precariedade, da exploração?
A solução do problema palestiniano ou sua não-resolução durante mais de 60 anos pela ONU e todos os estados envolvidos, mostra-nos que as nações e os estados não fazem parte da solução, mas são parte do problema.
Há que ter coragem de dizê-lo, de explicá-lo, de difundí-lo: só haverá progresso humano, com a abolição das nações, entendidas como estados-nações. Embora as forças conservadoras ao serviço do capitalismo estejam apostadas em avivar esse vírus mortífero do nacionalismo, a verdade é que apenas estão a adiar a emergência da sociedade do futuro, como federações livres de comunidades auto-organizadas e auto-geridas, dsem hierarquias, sem opressões. Todas as tentativas de manter o estado de coisas anterior, do domínio absoluto de «estados-nações», tem como consequência imediata a perpetuação e acentuação das diversas barbáries.
Manuel Baptista